Verdade

Não acredite em nada. Ou pelo menos
Em nada do que eu digo.
É tudo mentira.
Trata-se tão somente de chantagem sentimental descarada
De um carente sem caráter.
Não acredite principalmente
Em nenhuma poesia.
Principalmente as minhas.
Principalmente esta.

Sublime

Carrego a caneta entre os dedos
Como poderia carregar um cigarro.
A fumaça que não trago
Enevoa minha cabeça
E turva minha visão
Como o fog industrial
De subúrbios sem esperança.

A caneta destila minha vida
Como os rins purificam meu sangue.
Minhas nuvens de poluição
Se condensam em chuva ácida,
Encharcam meu espírito,
Escorrem pelos meus dedos
E são recolhidos pela canaleta,
Que percorre o papel corrompendo-o,
Manchando-o com meus pensamentos
Meus excretos.

Sem eles, torno-me outro,
Outra vez purificado,
Novamente encorajado
Para tornar à neblina
Espessa do meu caminho.
E o que sobra,
Estas manchas no papel,
Dedico a você, leitor,
Como também a tantos outros
Que não sabem de mim
Ou que sabem demais,
E envio esta mensagem
Que talvez só a custo
Possa ser chamada

Poesia.

Odisséia

Adonei
Deus ex machina
Magister dixit
Fiat lux!
Mehr licht!
Obscurum per obscurus
Ab ovo
Ab absurdo
Deo gratias!

Ecce homo
Vox clamantis in deserto
E pur, si muove
In sæcula sæculorun
Fugit irreparabile tempus
Abyssus abysmus invocat
Mors ultima ratio
Morituri te saludant

Gloria victis
Vae victis
Homo homini lupus
Stultori infinitus est numerus
Time is money
Eli, lamma sabachtani?

Dies iræ
Delenda Cartago
Se vis pacen, para bellun
Après moi, le déluge
Lasciate omni speranza, voi ch’entrate

Consumatun est
Resquiescat in pace
Vade retro!
Vade mecun

Traduttore, traditore

O senhor
Deus, por um artifício
O mestre disse
Faça-se a luz!
Mais luz!
O obscuro pelo mais obscuro
A partir do princípio
A partir do absurdo
Graças a Deus!

Eis o homem
Voz clamando no deserto
E, no entanto, se move
Pelos séculos dos séculos
Foge o tempo irreparável
Abismos chamam abismos
A morte é o último argumento
Os que vão morrer te saúdam

Glória aos vencidos
Ai dos vencidos
O homem é o lobo do homem
O número dos estúpidos é infinito
Tempo é dinheiro
Senhor, por que me abandonaste?

O dia da ira
Destrua Cartago
Se queres paz, prepara-te para a guerra
Depois de mim, o dilúvio
Deixai toda esperança, vós que entrais

Está consumado
Descanse em paz
Vá embora
Vem comigo

Tradutores, traidores

Arte conceitual

Li no jornal.
Um poeta latino-americano (esqueci o nome, esqueci o pais)
É dono da lua.
Lá pelo meio dos anos 50,
Antes de Gagarim e Armstrong,
Foi a um cartório
E registrou a propriedade.
Agora a lua é dele,
E passará a seus filhos.
Ainda que morram na miséria
Poderão ter esse orgulho.

Não sei nem se esse poeta ainda vive,
Mas não posso deixar de lhe agradecer
O privilégio
De me ter deixado contemplar

Aquela maravilhosa lua cheia de ontem à noite.

Hai-kai brasileiro

Na noite calma e quente
O arrastão de Madureira
Saqueia os passageiros.

Soneto da chantagem

Ó musa idolatrada de um soneto
Capenga, torto e em mau português:
Se tu me dás teu coração, prometo
Não tentar nunca mais uma outra vez

A inconstitucional iniqüidade
De ousar tentar concentrar num poema
Toda esta tua excelsa qualidade:
É bem pouco lugar pra tanto tema.

Pois se tu, ó talento, não me ajudas
—Só sei escrever clichê e lugar-comum—
E caso tu, ó musa, não me acudas

E oferte-me de vez teu coração,
Ingrata! Não te dou soneto algum,

Ou viro este num samba-canção.

Agosto

O céu, frio.
O frio, branco.
Acabou de chover.
Vai chover logo mais.

O chão, o tronco, o muro,
Molhados, ásperos, rachados.
Marrom.

A poça d’água fria na calçada
Marrom reflete o frio do céu branco.
O carro atropela a poça d’água,
Espirra lama para todos os lados,
E - milagre! - não atinge ninguém.

O carro vai longe
E a água da poça vai se aquietando.

Lar

A noite começa.
Salto na estação do pré-metrô,
Subo e desço a passarela,
Atravesso a avenida
Tão apropriadamente
Chamada de Suburbana.
Estou no meu porto
meu beco
minha nascente
minha foz.

Del Castilho.
Minha aldeia.
O último lugar onde nada acontece.
Olho do furacão,
Centro do Universo,
Meu umbigo,
Cujo cordão me liga à infância,
Me alimenta e sustenta,
Me renova a inocência
Nesses dias desencantos.
Meu útero materno,
Meu retiro espiritual,
Meu quebra-mar,
Onde o mundo não me alcança.
Minha vila.
Com pracinha, escola,
Condomínio de apartamentos,
Shopping-center e supermercados,
Botecos nas esquinas,
Igrejas protestantes
E terreiros de macumba,
E vão as mesmas pessoas
A todos esses lugares.
Com senhores aposentados
Barrigudos e carecas
Que varrem as folhas da rua,
Juntam e tacam fogo,
Provocando uma fumaceira dos diabos.
Com festa junina
Que acaba virando baile funk,
Com bicheiro na esquina
E comentários do assalto e do jogo de domingo.
Com moleques soltando pipa
E marmanjos jogando bola,
Com vizinhos fofoqueiros,
Ruas de paralelepípedo,
Prédios sem elevador
Porque só têm quatro andares.
Meu subúrbio.
Entre Madureira e Tijuca,
Entre Campo Grande e Leblon,
Entre Nova Iguaçu e New York,
Del Castilho.
De onde vim
E para onde vou
Quando tudo der errado

E não houver mais aonde ir.

3/12/93

Ócio.

Ópio.

Ódio.

Jacarezinho

Quatro negros
Passam num Monza azul-metálico
Do ano,
Com guias de Oxóssi penduradas no retrovisor,
Falando alto,
Apesar do rádio ligado No máximo,
Passam, dizia,
Ao lado da vala aberta do esgoto
Que desce do morro coalhado de barracos,
E, ao lado da vala, Um CIEP,
E, no telhado do CIEP,
Pousa um garça branca.

Câncer

Os funcionários do Banco do Brasil estão em greve.
No Centro Cultural Banco do Brasil acontece a exposição
Iberê Camargo, Mestre Moderno.
A exposição é no segundo andar.
Devido à greve, o segundo andar está fechado ao público.
Ninguém pode assistir a exposição.

Enquanto isso,
Iberê Camargo, mestre moderno,
O maior pintor brasileiro vivo,

Morre.

O continente negro

Seu nome
Não me interessa.

Não me interessa o que você pensa
O que você sente
O que você faz
O que você é.

Me interessa
O que você não sabe
O que você não conhece
O que você não percebe
O que você não entende.

Me interessa o seu imprevisto
O seu incompleto
O seu inconsciente
O seu imperfeito.

Não me interessa o que você quer.
Me interessa
O que você não sabe que é.
Me interessa

Seu nome.

A morte nossa de cada dia

Na 1ª vez que Gabriele foi à janela
Dois carros bateram bem em frente à sua casa.
Ninguém se machucara, mas
Os motoristas saltaram dos carros,
Um sacou uma arma,
Apontou contra a cabeça do outro
E disparou.

Na 2ª vez que Gabriele foi à janela
Dois homens conversavam na entrada do beco próximo.
Um, em pé, segurava pelos cabelos
O outro, ajoelhado à sua frente.
O 1º sacou uma arma,
Apontou contra a cabeça do outro
E disparou.

Hoje Gabriele tem medo de ir à janela.
Mas nem precisa.
Toda noite assiste em sonhos novamente
Aos dois assassinatos. E, quando acorda,
Pra não ficar pensando nessas coisas,
Vai assistir televisão.

Lógica

— Rafa, você está andando de carro às 3 da manhã num caminho deserto. De repente um cachorro atravessa a rua na sua frente e você o atropela. Você leva o cachorro ao veterinário?
— Levo, claro.
— Mas e se o cachorro estiver morto?
— Cachorro morto não atravessa a rua,pô!
(sobre conversa de Cleide e Rafael)

Um diálogo

Édipo-
Eu sou um justo.
Eu, que era rei
E aplicava a justiça a todos,
Era cego sem saber.
Sem saber,
Matei meu pai e dormi com minha mãe.
Furei meus olhos e parti.
Sendo cego, não posso ser rei.
A justiça se fez.

A Justiça-
O pior cego é o que não quer ver...
Eu não tenho rei, não tenho lei.
E não quero nem ver, não quero nem saber.
Eu não sou besta de furar meus olhos.
Em vez disso, eu os vendo.
Vendo os olhos, vendo o corpo todo.
Estou inteira à venda.
Em terra de cego, quem tem olho é rei...

Eclipse

No céu, a lua cheia se amarela, se avermelha,
Encoberta pela sombra do sol,
E se espalha em reportagens na televisão
E comentários da vizinhança.
A lua não desaparece, apenas sombreia,
Tornando nítido seu relevo, suas crateras,
E as pessoas param na rua para ver.
Na tela, um jogo no Maracanã
E flashes da lua em todos os lugares.
Pra que, se é a mesma lua
Que paira sobre todas as cabeças?
A mesma lua escurecida e estranha
Em todos os olhos, em todas as telas,
Repetida e multiplicada por mil,
Mas ainda assim ela mesma, única e só,
Esmaecida revelando-se às vistas
Enquanto, sem interesse, assiste nosso interesse,
Abotoando o céu negro,
Servindo de vértice a nossos olhares
E sendo assim a única coisa
Que existe entre meu coração,
Eclipsado e opaco, e você:
A certeza de que, por um segundo que seja,
Olhamos ambos na mesma direção.

Imagem

Um homem vai ao cartório
Para conseguir a obrigatória certidão de nascimento do filho
Natimorto.

O significado deste gesto
É desconhecido,
Mas tem a força avassaladora da dor

De um polegar decepado na porta do carro.

A arte de navegar sem bússola

Um elétron
Dispara em linha reta
E se choca com outro elétron em direção contrária,
Provocando uma explosão microscópica
Que libera um feixe de energia
Que por sua vez dispara em linha reta
Até se chocar com um pedaço de metal,
Refletir e perder-se no espaço.

Um relógio de pulso digital
Avança em frente na dimensão do tempo em velocidade constante
Impulsionado por um chip minúsculo,
Do tamanho de uma unha,
Impulsionado por sua vez
Por uma bateria ainda menor,
Que, em última instância,
Governa a vida de uma pessoa.

Um homem
Está sentado num banco
De um coletivo que avança pela rua,
Olhando para ontem e pensando
No trabalho de onde acabou de sair,
Na casa para onde vai,
Nos filhos que tem para criar
E na vida que está deixando se perder.

Um menino
Brinca em frente à TV ligada
Sem dar atenção à programação
Nem a nada que não seja a brincadeira
Sem saber que, sem se dar conta,
Dá sentido à vida de seu pai,
À passagem do tempo
E ao movimento dos elétrons pelo espaço.

Descrição

O interior,
Inteiro.
O anterior,
Etéreo.
O exterior,
Incerto.
O inferior,
Império.
O ulterior,
Eterno.

O interior,
Externo.
O anterior,
Espero.
O exterior,
Interno.
O inferior,
Inferno.
O ulterior,

Eterno.

Constuição cidadã

Ser cidadão é fácil.
Se você for branco, adulto, classe média,
Deixe a barba por fazer,
Ponha uma camisa rasgada
E, numa noite de terça-feira,
Pegue o 623 - Penha/Saes Peña.
Quando passar no Túnel Noel Rosa,
Em frente à boca do Jacaré,
E cosme e damião forem revistar os negros da traseira,
Fique encarando o policial.
Ele vai pedir seus documentos.
Pronto.
Sua existência foi reconhecida por uma de nossas mais importantes instituições.
Agora você é um cidadão.

Ser cidadão é fácil.
Se você é uma criança negra, órfã e analfabeta,
Tome um banho no chafariz,
Ponha sua roupa mais limpa,
Vá a uma porta do MacDonald’s
E peça para uma tia pagar um Big Mac.
Sente numa das mesinhas
E coma devagar, saboreando
Aquele pedacinho do sistema selvagem que está lhe destruindo.
Deixe que todos vejam o brilho nos seus olhos.
Agora você é um cidadão.

§1º Todo cidadão tem o direito de ser parado pela polícia.
§
Todo cidadão tem o direito de comer Big Mac.