Não acredite em nada. Ou pelo menos
Em nada do que eu digo.
É tudo mentira.
Trata-se tão somente de chantagem sentimental descarada
De um carente sem caráter.
Não acredite principalmente
Em nenhuma poesia.
Principalmente as minhas.
Principalmente esta.
Verdade
Sublime
Carrego a caneta entre os dedos
Como poderia carregar um cigarro.
A fumaça que não trago
Enevoa minha cabeça
E turva minha visão
Como o fog industrial
De subúrbios sem esperança.
A caneta destila minha vida
Como os rins purificam meu sangue.
Minhas nuvens de poluição
Se condensam em chuva ácida,
Encharcam meu espírito,
Escorrem pelos meus dedos
E são recolhidos pela canaleta,
Que percorre o papel corrompendo-o,
Manchando-o com meus pensamentos
Meus excretos.
Sem eles, torno-me outro,
Outra vez purificado,
Novamente encorajado
Para tornar à neblina
Espessa do meu caminho.
E o que sobra,
Estas manchas no papel,
Dedico a você, leitor,
Como também a tantos outros
Que não sabem de mim
Ou que sabem demais,
E envio esta mensagem
Que talvez só a custo
Possa ser chamada
Poesia.
Odisséia
Adonei
Deus ex machina
Magister dixit
Fiat lux!
Mehr licht!
Obscurum per obscurus
Ab ovo
Ab absurdo
Deo gratias!
Ecce homo
Vox clamantis in deserto
E pur, si muove
In sæcula sæculorun
Fugit irreparabile tempus
Abyssus abysmus invocat
Mors ultima ratio
Morituri te saludant
Gloria victis
Vae victis
Homo homini lupus
Stultori infinitus est numerus
Time is money
Eli, lamma sabachtani?
Dies iræ
Delenda Cartago
Se vis pacen, para bellun
Après moi, le déluge
Lasciate omni speranza, voi ch’entrate
Consumatun est
Resquiescat in pace
Vade retro!
Vade mecun
Traduttore, traditore
O senhor
Deus, por um artifício
O mestre disse
Faça-se a luz!
Mais luz!
O obscuro pelo mais obscuro
A partir do princípio
A partir do absurdo
Graças a Deus!
Eis o homem
Voz clamando no deserto
E, no entanto, se move
Pelos séculos dos séculos
Foge o tempo irreparável
Abismos chamam abismos
A morte é o último argumento
Os que vão morrer te saúdam
Glória aos vencidos
Ai dos vencidos
O homem é o lobo do homem
O número dos estúpidos é infinito
Tempo é dinheiro
Senhor, por que me abandonaste?
O dia da ira
Destrua Cartago
Se queres paz, prepara-te para a guerra
Depois de mim, o dilúvio
Deixai toda esperança, vós que entrais
Está consumado
Descanse em paz
Vá embora
Vem comigo
Tradutores, traidores
Arte conceitual
Li no jornal.
Um poeta latino-americano (esqueci o nome, esqueci o pais)
É dono da lua.
Lá pelo meio dos anos 50,
Antes de Gagarim e Armstrong,
Foi a um cartório
E registrou a propriedade.
Agora a lua é dele,
E passará a seus filhos.
Ainda que morram na miséria
Poderão ter esse orgulho.
Não sei nem se esse poeta ainda vive,
Mas não posso deixar de lhe agradecer
O privilégio
De me ter deixado contemplar
Aquela maravilhosa lua cheia de ontem à noite.
Soneto da chantagem
Ó musa idolatrada de um soneto
Capenga, torto e em mau português:
Se tu me dás teu coração, prometo
Não tentar nunca mais uma outra vez
A inconstitucional iniqüidade
De ousar tentar concentrar num poema
Toda esta tua excelsa qualidade:
É bem pouco lugar pra tanto tema.
Pois se tu, ó talento, não me ajudas
—Só sei escrever clichê e lugar-comum—
E caso tu, ó musa, não me acudas
E oferte-me de vez teu coração,
Ingrata! Não te dou soneto algum,
Ou viro este num samba-canção.
Agosto
O céu, frio.
O frio, branco.
Acabou de chover.
Vai chover logo mais.
O chão, o tronco, o muro,
Molhados, ásperos, rachados.
Marrom.
A poça d’água fria na calçada
Marrom reflete o frio do céu branco.
O carro atropela a poça d’água,
Espirra lama para todos os lados,
E - milagre! - não atinge ninguém.
O carro vai longe
Lar
A noite começa.
Salto na estação do pré-metrô,
Subo e desço a passarela,
Atravesso a avenida
Tão apropriadamente
Chamada de Suburbana.
Estou no meu porto
meu beco
minha nascente
minha foz.
Del Castilho.
Minha aldeia.
O último lugar onde nada acontece.
Olho do furacão,
Centro do Universo,
Meu umbigo,
Cujo cordão me liga à infância,
Me alimenta e sustenta,
Me renova a inocência
Nesses dias desencantos.
Meu útero materno,
Meu retiro espiritual,
Meu quebra-mar,
Onde o mundo não me alcança.
Minha vila.
Com pracinha, escola,
Condomínio de apartamentos,
Shopping-center e supermercados,
Botecos nas esquinas,
Igrejas protestantes
E terreiros de macumba,
E vão as mesmas pessoas
A todos esses lugares.
Com senhores aposentados
Barrigudos e carecas
Que varrem as folhas da rua,
Juntam e tacam fogo,
Provocando uma fumaceira dos diabos.
Com festa junina
Que acaba virando baile funk,
Com bicheiro na esquina
E comentários do assalto e do jogo de domingo.
Com moleques soltando pipa
E marmanjos jogando bola,
Com vizinhos fofoqueiros,
Ruas de paralelepípedo,
Prédios sem elevador
Porque só têm quatro andares.
Meu subúrbio.
Entre Madureira e Tijuca,
Entre Campo Grande e Leblon,
Entre Nova Iguaçu e New York,
Del Castilho.
De onde vim
E para onde vou
Quando tudo der errado
E não houver mais aonde ir.
Jacarezinho
Passam num Monza azul-metálico
Do ano,
Com guias de Oxóssi penduradas no retrovisor,
Falando alto,
Apesar do rádio ligado No máximo,
Passam, dizia,
Ao lado da vala aberta do esgoto
Que desce do morro coalhado de barracos,
E, ao lado da vala, Um CIEP,
E, no telhado do CIEP,
Pousa um garça branca.
Câncer
Os funcionários do Banco do Brasil estão em greve.
No Centro Cultural Banco do Brasil acontece a exposição
Iberê Camargo, Mestre Moderno.
A exposição é no segundo andar.
Devido à greve, o segundo andar está fechado ao público.
Ninguém pode assistir a exposição.
Enquanto isso,
Iberê Camargo, mestre moderno,
O maior pintor brasileiro vivo,
Morre.
O continente negro
Seu nome
Não me interessa.
Não me interessa o que você pensa
O que você sente
O que você faz
O que você é.
Me interessa
O que você não sabe
O que você não conhece
O que você não percebe
O que você não entende.
Me interessa o seu imprevisto
O seu incompleto
O seu inconsciente
O seu imperfeito.
Não me interessa o que você quer.
Me interessa
O que você não sabe que é.
Me interessa
Seu nome.
A morte nossa de cada dia
Na 1ª vez que Gabriele foi à janela
Dois carros bateram bem em frente à sua casa.
Ninguém se machucara, mas
Os motoristas saltaram dos carros,
Um sacou uma arma,
Apontou contra a cabeça do outro
E disparou.
Na 2ª vez que Gabriele foi à janela
Dois homens conversavam na entrada do beco próximo.
Um, em pé, segurava pelos cabelos
O outro, ajoelhado à sua frente.
O 1º sacou uma arma,
Apontou contra a cabeça do outro
E disparou.
Hoje Gabriele tem medo de ir à janela.
Mas nem precisa.
Toda noite assiste em sonhos novamente
Aos dois assassinatos. E, quando acorda,
Pra não ficar pensando nessas coisas,
Lógica
— Levo, claro.
— Mas e se o cachorro estiver morto?
— Cachorro morto não atravessa a rua,pô!
(sobre conversa de Cleide e Rafael)
Um diálogo
Eu sou um justo.
Eu, que era rei
E aplicava a justiça a todos,
Era cego sem saber.
Sem saber,
Matei meu pai e dormi com minha mãe.
Furei meus olhos e parti.
Sendo cego, não posso ser rei.
A justiça se fez.
A Justiça-
O pior cego é o que não quer ver...
Eu não tenho rei, não tenho lei.
E não quero nem ver, não quero nem saber.
Eu não sou besta de furar meus olhos.
Em vez disso, eu os vendo.
Vendo os olhos, vendo o corpo todo.
Estou inteira à venda.
Em terra de cego, quem tem olho é rei...
Eclipse
Encoberta pela sombra do sol,
E se espalha em reportagens na televisão
E comentários da vizinhança.
A lua não desaparece, apenas sombreia,
Tornando nítido seu relevo, suas crateras,
E as pessoas param na rua para ver.
Na tela, um jogo no Maracanã
E flashes da lua em todos os lugares.
Pra que, se é a mesma lua
Que paira sobre todas as cabeças?
A mesma lua escurecida e estranha
Em todos os olhos, em todas as telas,
Repetida e multiplicada por mil,
Mas ainda assim ela mesma, única e só,
Esmaecida revelando-se às vistas
Enquanto, sem interesse, assiste nosso interesse,
Abotoando o céu negro,
Servindo de vértice a nossos olhares
E sendo assim a única coisa
Que existe entre meu coração,
Eclipsado e opaco, e você:
A certeza de que, por um segundo que seja,
Olhamos ambos na mesma direção.
Imagem
Um homem vai ao cartório
Para conseguir a obrigatória certidão de nascimento do filho
Natimorto.
O significado deste gesto
É desconhecido,
Mas tem a força avassaladora da dor
De um polegar decepado na porta do carro.
A arte de navegar sem bússola
Um elétron
Dispara em linha reta
E se choca com outro elétron em direção contrária,
Provocando uma explosão microscópica
Que libera um feixe de energia
Que por sua vez dispara em linha reta
Até se chocar com um pedaço de metal,
Refletir e perder-se no espaço.
Um relógio de pulso digital
Avança em frente na dimensão do tempo em velocidade constante
Impulsionado por um chip minúsculo,
Do tamanho de uma unha,
Impulsionado por sua vez
Por uma bateria ainda menor,
Que, em última instância,
Governa a vida de uma pessoa.
Um homem
Está sentado num banco
De um coletivo que avança pela rua,
Olhando para ontem e pensando
No trabalho de onde acabou de sair,
Na casa para onde vai,
Nos filhos que tem para criar
E na vida que está deixando se perder.
Um menino
Brinca em frente à TV ligada
Sem dar atenção à programação
Nem a nada que não seja a brincadeira
Sem saber que, sem se dar conta,
Dá sentido à vida de seu pai,
À passagem do tempo
Descrição
O interior,
Inteiro.
O anterior,
Etéreo.
O exterior,
Incerto.
O inferior,
Império.
O ulterior,
Eterno.
O interior,
Externo.
O anterior,
Espero.
O exterior,
Interno.
O inferior,
Inferno.
O ulterior,
Eterno.
Constuição cidadã
Ser cidadão é fácil.
Se você for branco, adulto, classe média,
Deixe a barba por fazer,
Ponha uma camisa rasgada
E, numa noite de terça-feira,
Pegue o 623 - Penha/Saes Peña.
Quando passar no Túnel Noel Rosa,
Em frente à boca do Jacaré,
E cosme e damião forem revistar os negros da traseira,
Fique encarando o policial.
Ele vai pedir seus documentos.
Pronto.
Sua existência foi reconhecida por uma de nossas mais importantes instituições.
Agora você é um cidadão.
Ser cidadão é fácil.
Se você é uma criança negra, órfã e analfabeta,
Tome um banho no chafariz,
Ponha sua roupa mais limpa,
Vá a uma porta do MacDonald’s
E peça para uma tia pagar um Big Mac.
Sente numa das mesinhas
E coma devagar, saboreando
Aquele pedacinho do sistema selvagem que está lhe destruindo.
Deixe que todos vejam o brilho nos seus olhos.
Agora você é um cidadão.
§1º Todo cidadão tem o direito de ser parado pela polícia.
§2º Todo cidadão tem o direito de comer Big Mac.
Títulos
Como ser uma heroína com um sorriso ou
Dois olhos fundos e falantes ou
Outra menina aprendendo a ser mãe ou
O prazer da cumplicidade silenciosa ou
A sobrevivência ou
Outra mãe ensinando a ser menina ou
A professora de voz sussurrada ou
Um coração simples de mulher.
Questão
Em que é que estou pensando,
Que quando penso, inocente,
Cria-se, toma formato,
Fugindo de meu controle
E, assumindo conseqüências,
Interfere no Universo,
Independente de mim,
Sem ser mais parte de mim?
Em que não estou pensando,
Que não faz parte de mim,
E por isso delimita
O que sou e o que não sou,
Embora seja, talvez,
Justamente o que me faz
Mais falta para que eu seja
Apenas inteiro eu?
Em que é que estou pensando,
Ou melhor,
Em que é que não estou,
Mas sim
O que é que está me pensando?
Canção de ninar
Durma bem
Ao lado de sua filha
Enquanto eu
De longe, destilo todo o carinho que puder
E lhe envio
No formato de sonho que você tenha.
Durma com os anjos
Com sua filha no colo
Enquanto eu,
De perto, sonho acordado com você
E lhe espero
Com a paciência de quem espera em sonho.
Durma sorrindo
No colo de sua filha,
Com o sorriso que só tem
Quem foi pôr a filha para dormir
E acabou dormindo junto.
Sorria dormindo
O sorriso que, acordada,
Você só dá quando desprevenida,
Enquanto eu vou sonhar seus sorrisos
E sorrir seus sonhos.
Sonhe comigo.
Advento
No dia 26 de dezembro
Moleques jogam bola na praça,
Igrejas recebem seus fiéis,
O comércio abre suas portas,
As nuvens avançam pelo céu,
Baratas se esgueiram pelo esgoto,
Jornais circulam pela manhã,
Como se nada tivesse acontecido.
No dia 26 de dezembro
Donas de casa varrem a sala,
Os cemitérios dormem tranqüilos,
Os ônibus passam pelos pontos,
Os cães assistem frangos assados,
A Terra gira em torno do Sol,
Vendem-se drogas ao pé do morro
Como se nada estivesse acontecendo.
No dia 26 de dezembro
O lixo se esquece nas calçadas,
Os cabelos do velho embranquecem,
Grandes dívidas são protestadas,
Menstruações chegam nas mulheres,
O rádio toca Legião Urbana,
Os rios continuam correndo
Como se nada estivesse para acontecer.
Dez segundos
1- O meio-campo pára com a bola dominada, levanta a cabeça e olha para a área. Um pintor pára em frente à tela, pincel na mão.
2- Estoura um tiroteio entre traficantes e polícia num morro da zona norte. Numa rodada de sueca, alguém joga um ás de copas.
3- O artista dá uma pincelada e pára. O centro-avante dispara num pique de 50 metros.
4- Os moradores da favela correm para suas casas. O pintor se arrepende e limpa a tela. Uma moça vê pela primeira vez o rapaz por quem não sabe ainda que vai se apaixonar.
5- Na mesa de baralho, um senhor corta o ás de copas com o trunfo. O pintor pensa, procurando inspiração. O centro-avante recebe a bola na entrada da área.
6- O rapaz nota a presença da moça e sorri, sem saber bem porque. Um passante é atingido no meio do tiroteio.
7- Outra pessoa na mesa descarta um trunfo maior. O artista sorri de repente. O atacante ginga para a direita.
8- O artista começa a pintar um quadro. O atacante chuta. O homem que levou o tiro cai, e o tiroteio continua.
9- A moça sorri para o rapaz. Na mesa de jogo, o vencedor da rodada recolhe as cartas. O homem baleado morre. O goleiro salta.
10- Gol.
Sobre um sorriso
Minha solidão se fecha sobre si mesma
E toma a forma de uma bilha de metal
Impenetrável e misteriosa no meu peito.
Minha solidão evapora e se expande,
Esfumaça e é absorvida pelos órgãos internos
Até começar a ser exalada pelos poros.
Minha solidão solidifica sobre minha pele
Formando uma crosta, uma rígida armadura
Que me recobre e vai me tornar insensível.
Minha solidão derrete e torna-se líquida,
Encharca todo o meu corpo e escorre,
Empoçando e alagando sob meus pés.
Minha solidão fluidifica como sombra,
Costura-se a mim e me persegue
Por onde quer que haja a menor luz.
Minha solidão me acompanha fielmente,
E corro sozinho pela rua deserta
Para deixar minha solidão para traz.
Vocativo
Minhas três musas do Sabonete Araxá,
Minhas pré-adolescentes pós-virginais,
Minhas madoninhas Like a virgin / Material girl,
Minhas pequenas caipiras da geração Shopping Center,
Minha Santíssima Trindade,
Mater, Fili e Spiriti Santi,
Cobra, jacaré e elefante,
Minhas três irmãs Parcas,
Que me fiam, tecem e matam
Enquanto as contemplo embevecido,
Minha trilogia
Meu triunvirato,
Minhas três marias,
Minhas três patetas,
Minhas três reis-magas,
Minhas três mosqueteiras,
Uma por todas, todas por um
Triz,
Meu trevo de quatro folhas,
Três faces da mesma moeda,
Minha Tríplice Aliança, ou Entente, sei lá,
Minha tristeza,
Minhas meninas,
Três
Tristes
Tigres
Num trigal,
Trespassadas pela vida
E que a vida vai, eu sei,
Se pa rar.
Poder
Dispenso o rio
E, vestes secas,
Rio à margem.
Depois me arrependo
E me atiro n’água.
Dispenso a margem,
Mergulho fundo,
Rio de mim.
Entre duas margens,
Escolho a terceira.
Dispenso a mim
E, alma úmida,
Rio seco.
E sigo à nascente,
Ou remonto à foz.
Tanto faz.
Trilha sonora
Este instrumento
É um variante do contrabaixo acústico.
Mantém a afinação original,
Mas é tocado sem arco,
Em pizzicatto
Este outro
É uma espécie de alaúde elétrico.
Elétrico quer dizer
Que seu som é muitas vezes ampliado,
Até transformar-se
Num agulha afiadíssima
Ou numa parede de pedra.
Já este aqui
É a evolução e síntese
De todos os tambores de todas as tribos
De todos os batuques de todos os rituais
De todas as religiões de todos os deuses
E sem-deus.
E, em meio ao inferno musical
Causado pela percussão simultânea destes três instrumentos,
Um homem berra em qualquer língua
Velhas e novas profecias,
As lamentações de Jeremias,
Os salmos de Davi,
As exortações de João Batista,
O apocalipse de João,
Mantras que falam do fim do mundo
E de sua ressurreição ao terceiro dia.
Natureza-morta
Brechó,
Armarinho de miudezas;
Botões, bolas de gude, moedas,
Velhas fotografias 3X4,
Pequenos sentimentos mesquinhos guardados.
Canetas usadas sem tinta
Amontoadas na gaveta,
Bilhetes de ontem, de semana passada,
Do mês passado, do ano passado,
Do passado.
Roupas da mãe, da avó,
Jóias de família que não valem nada,
Promessas não cumpridas, lembranças,
Gente que casou, mudou
E não deixou endereço.
E um nome que vem na memória de repente,
Amarelado, esmaecido,
Mas pendurado na parede da sala de jantar,
Dominando todo o cômodo
E parece que olhando para mim.
Eu ainda sou muito novo para entender estas coisas.
Do sol
A casa é cheia de problemas
Que se atropelam imprevistos
E não dá tempo de pensar
Pois quando se resolve um
Apareceram outros dez.
A casa é cheia de goteiras
E a água desce pelos fios
Desencapados para o balde
E quando vai-se esvazia-lo
Vê-se que a pia entupiu.
A casa é cheia de trabalho
Lavar banheiro todo dia
Descongelar a geladeira
Levar crianças no colégio
Manter as coisas no lugar.
A casa é cheia de malucos
O parabrisa do automóvel
Tem uma enorme rachadura
Mas colocaram um adesivo
E ele finge que segura.
A casa é cheia de surpresas
Quando as pessoas se acostumam
Com cada interruptor
Alguém substitui as lâmpadas
E troca todas de bocal.
A casa é cheia de pessoas
A porta fica sempre aberta
Entra quem quer e quem não quer
E é tanta coisa pra fazer
Que nem se lembra de sair.
A casa é cheia de bagunça
As coisas saem do lugar
E ninguém sabe, ninguém viu
E aparecem por milagre
Quando ninguém mais esperava.
A casa é cheia de milagres
Quando os problemas são maiores
E ninguém sabe resolver
A solução surge do nada
E só nos resta obedecer.
A casa é cheia de absurdos
Nada parece ter sentido
Mas quando anda-se o bastante
Para poder olhar pra traz
Chegou-se aonde se devia.
A fome cura-se com sonho
A dor se cura com canção
Cansaço cura-se com risos
E vai dormir-se de manhã.
Falso soneto
A cáfila de imbecis seqüestra o bom senso,
Vagando em círculos e ficando neuróticos,
Drogando-se e contando vantagens ridículas,
Perseguindo-me com olhos tortos e bafo de fermento.
Fujo de seus perdigotos de água benta
E tapinhas nas costas como o Diabo da cruz,
Espionando tímido a beleza oculta e ingênua
Que há nas frinchas estreitas entre o bem e o mal.
O mundo gira em falso, indiferente à minha fúria,
Afogando-se em obscura/medíocre/obscenidade,
E espera confiante pela vinda do Anticristo.
Mas a beleza tem sempre 17 anos,
Implacavelmente fora do meu alcance,
E pressinto o impossível perdão em seu olhar.
Apostolado
Os paladinos do improvável desconfiam do impossível,
Desconfiam de si mesmos.
Os citadinos do impalpável desafiam o infalível,
Desafiam a si mesmos.
Os clandestinos do imprestável desprezam o impassível,
Desprezam a si mesmos.
Os meus meninos do incansável vencem o insensível,
Vencem a si mesmos.
Os Severinos do impensável são o incabível,
São quem querem.
Contrato
Eu te aceito como você não é,
Com erros de concordância
E acertos de discordância.
Eu te aceito como você gostaria que fosse,
Com pomos da discórdia
E os acordos que compomos.
(os que dispomos)
Eu te aceito como você planeja ser,
Sem choro nem vela
Ou velando ao pé da cama.
Eu te aceito como você for,
Como você vier.
Eu me desejo como você me aceita,
Com assomos de sapiência
E arroubos de arrogância.
Eu me aceito como você me deseja,
Com faltas de paciência
E certas extravagâncias.
Eu te desposo como você não for,
Com tanta inexperiência
E troca de alianças.
Eu te aceito como você se dispuser,
Na dor e no prazer,
Na renúncia do poder.
Eu te quero como você quiser.
A seco
1.
Quando te conheci, por muito tempo
Passei levando chuva na cabeça.
Mal saía de casa descoberto,
Já desaguava tempestade aberta,
E não adiantava proteger-me,
Pois era quase sempre surpreendido;
A chuva me impedia de esquecer-te,
O que, no fundo mesmo, não queria.
E nem sequer cheguei a concluir
Se eu atraía a chuva sem ciência
Ou se era você que ma mandava,
Gozando de minha condescendência.
2.
Não atrevo-me a blefar o esquecimento,
Mas deixei de molhar-me pela rua.
Apoderei-me de meu sentimento,
E o visto cômodo como uma luva.
Contudo, me permito contempla-la,
Estacionado à beira do abismo;
A ponto de às vezes imaginar
Como seria bom o cataclismo
Então sinto saudades da tormenta
E quando a vejo sinto quase a água,
Enquanto esbravejo no pensamento:
— Por que é que esta chuva não desaba?
A João Cabral de Melo Neto
Origem
É impossível deixar para traz
A cidadezinha onde se nasceu.
Carrega-se sempre dentro de si
E, ao nega-la, afirma-se mais,
Dialética, referencial.
Não é possível tirar de si
A cidadezinha onde se nasceu.
Quanto mais fundo se enterra no chão
Mais a raiz se aprofunda na terra,
Mais a copa cresce e se alarga.
Mas é possível tornar-se maior
Que a cidadezinha onde se nasceu.
Suplantá-la, ampliar horizontes,
Subir na árvore e olhar
A floresta a estender-se além.
Mas, surpresa! Ao que se cresce
A cidadezinha cresce também.
Torna-se maior que ela própria,
E novamente maior que nós,
Mundo grande onde se nasceu.
Visceral
Exponho o olho à faca
Exponho a cara a tapa
Exponho a faca ao olho
Exponho a alma ao sonho.
Fendo o real ao meio
A ver se é oco ou cheio
A ver do vida o cerne
A ver se é sumo ou verme.
Ao meio fendo a derme
A ver seu osso e carne
A ver da vida o seio
A ver seu sangue e veio.
Exponho ao olho a faca
Exponho à cara o tapa
Exponho à faca o olho
Exponho à alma o sonho
A Stanley Kubrick
Digressão
O prazer de assistir os amigos envelhecerem
Em seus casamentos e aniversários,
Sem, contudo, poder ter certeza
Se são realmente eles que envelhecem
Ou apenas nosso olhar sobre eles.
(Como quando esqueci o violão no Shopping.
Cheguei quinze minutos antes do cinema,
Comprei o bilhete e sentei na praça.
Na hora da sessão, me levantei
E deixei o instrumento encostado no banco.
Assisti o filme, peguei o metrô
E voltei para casa. Uma hora depois,
Lembrei do violão abandonado.
Dia seguinte voltei para busca-lo,
Torcendo para ter sido encontrado.
O segurança disse que sim,
Haviam lhe entregue um violão ontem,
E foi busca-lo para mim. Mas súbito
Tive medo, não que não fosse o meu,
Mas que não me reconhecesse mais.
Pois tanto eu teria mudado em uma noite
Sem notar, por estar sempre comigo,
Porém ele, assim distanciado
Momentaneamente, perceberia,
E não quereria retornar comigo.
E, com efeito, onde está esse violão
Que não aparece? O guarda,
Embora garanta que o recebera,
Não consegue encontra-lo, e imagino
Que ele se esconde de mim.
Mas não, ei-lo que aparece,
E é o mesmo, não mudou nada,
Salvo um clip que colocaram
Para melhor fechar a capa rasgada.
Agradeço e levo-o para casa.
Mas ele parece me olhar estranho,
Como quem desconfia de mim.
Claro, já foi esquecido uma vez,
E, por sua vez, não se esquecerá.
Mudamos, não seremos mais os mesmos.)
O prazer de envelhecer e assistir os amigos
Enquanto é assistido por eles,
Mudando continua, paulatinamente,
Tornando-se outros, distintos, diversos,
E mutuamente se reconhecendo.
Lispector
O sentimento difuso
Poderia ser amor
Ou outro qualquer
Da boca do estômago,
Sobe e converte-se
Em gosto estranho
No céu da boca.
A luz sobre as coisas
Transpassa-as,
Mostrando-lhes o âmago,
Tornando-as nítidas,
Mas embaralhando-as,
Recombinando-as
E extraindo delas
Novos significados.
As coisas têm gosto,
Como os sentimentos.
O travo amargo
Abranda e adoça.
As palavras escritas
Ressoam, não no ar,
Nem ressoam, calam,
Entre o ouvido e a nuca.
As vozes das coisas
Impressas no livro
Vêm dos sentimentos
Dispersos no corpo
E não é possível
Saber se as palavras
Dão vozes às coisas
E nomes aos gostos
Ou apenas descrevem
Sentidos esparsos
E gritam no espaço
Esperando resposta.
Teatro
Assim a vida torna-se memória,
Como uma cidade que se deixa.
Assim a memória submerge em nós,
Como os rostos esmaecem nas fotos.
Como o palco em que subi hoje.
Fui visto e conhecido por todos,
Vi todos os rostos sem os conhecer.
Como o ônibus varando a noite
Ilumina as árvores que mal se vê.
Assim a memória torna-se difusa,
Como a neblina tomando a estrada.
Assim a vida submerge em nós,
Como um armário atulhado de trastes.
Como a velhinha que vi hoje,
Olhando o mundo de uma janela,
E eu a vendo sem ser visto.
Como da janela do ônibus
Vejo a escuridão que não me vê.
Assim nós submergimos na memória,
Como o ônibus na neblina da noite.
Assim a memória torna-se a vida,
Como um novo palco em que se chega.
Sintoma
Algo que ressoa em mim como uma imperfeição,
Uma pequena rachadura na parede,
Uma infiltração, uma inquietação,
Uma inadaptação,
Uma lembrança de um ajuste de contas pendente em outro lugar,
Um leve encrespar de lábios ou de testa,
Um revolutear de nuvem no marasmo de um céu nublado,
Uma impaciência, uma estranheza,
Uma insatisfação,
Um discreto ruído não identificado,
Uma incapacidade não admitida,
Um vôo de marimbondo,
Uma imprecisão,
Chama minha atenção em meio à esparsa distração
Para o que pode, ou não, ser
Uma ainda não explicitada e,
Possivelmente, ainda não experimentada ou explorada,
Por inespecífica ou por insignificante,
Uma nova, quiçá uma extinta, uma possível,
Uma outra forma de amor.
Síntese
Iria se chamar
“À amiga que não se matou”,
Varando a noite negra, ou branca,
Insone como num sonho,
Medindo forças até de manhã
Com um reles frasco de comprimidos
Impassível, impávido sobre a cômoda,
Fonte da noite,
Fim das dúvidas.
Então o dia clareou,
Ela e seus fantasmas foram dormir
Um sono exausto e branco, ou negro.
Ou seria a premonição
Do vidro do ônibus estilhaçado,
O caco varando o olho direito,
Sonho como numa vigília,
Calafrio no dia quente,
Segundos antes da freada brusca,
Da barra do pedágio baixada inadvertidamente,
Do choque contra o parabrisa,
Que rachou na cara do motorista
Mas não, não quebrou.
Sobra um verso,
Altivo e solitário como um primogênito;
Desígnio.
Paz
Fundemos nossa casa.
Que sejam eles sólidos e rijos,
Vigas de aço e concreto armado,
Que nossa dor seja firme e tenaz,
Enraizada fundo no chão,
Para que sobre ela nós,
Minúsculos e desamparados,
Fundemos nossa casa,
Elevemos aos ares nossos olhos,
Sendo então os primeiros a ver o sol nascer
E os últimos a vê-lo se pôr,
E sobre os alicerces da dor
Possamos suavemente descansar.
Torpe
Minhas costas curvas
Minhas contas curtas
Linhas tortas
Vistas turvas
Vias mortas
Pistas surdas
Não importa
Quais as lutas
Corta as cordas
Não concorda
Se são justas
Chuta as portas
Queima as pontes
Chama as hordas
Queima as cartas
Chama as putas
Minhas virgens castas
Vinhas de mão postas
Minhas tintas gastas
Lindas quanto gostas
Vais e voltas
Vãs revoltas
Bosta
Hóstia
Que me furtas
Contra a Besta
Uma réstia
Em trânsito
Preparo a morte
O vento açoite
Escrevo certo
Por linhas tortas
Me ponho à parte
Aponto o norte
Prefiro a sorte
Cometa desgovernado
Na estrada esburacada
Pergaminho se desenrola
Na face encarquilhada
A caneta risca a estrada
Traça sulcos desordenados
O gato atravessa a via
As curvas denteiam a serra
Piscam olhos de gato
A estação repetidora
Luz no morro distante
Avião traceja o breu
A lâmpada de leitura
Reflete-se na janela
A lua cheia do céu
O amor espera à porta
O amor espera em Marte
O amor espera informe
O amor espera inerme
O amor espera insone
A Via Láctea deita na distância
Descansa.
Isto
À distância desponta o olho atento
Que desperta disperso e discordante.
A discórdia se apressa, chega a tempo,
Fez-se do amigo próximo o distante.
A tensão já despista e se disfarça
E desfaz-se no espaço enquanto testo
Os díspares instintos numa esparsa
Festa desembestada que detesto.
A disputa distende-se indistinta
A despir-se e dispor de diparates,
Mas distrai-se depressa noutras tintas.
Não distingue-se então meu desatino
Que, discreto, despede-se destarte
Desaponta, descrente no destino.
Inconcluso
Não há consolo
Para o tempo andando em frente
A passos lentos, sem pressa,
Inexoravelmente.
Não é consolo
O abraço do amigo,
O sorriso da lourinha,
O aumento de ordenado
Ou a memória do pai.
Só há consolo
Num poema de Drummond
Perdido dentro de um livro
Que coloquei não sei onde.
Não é consolo
O poema que fabrico,
Moldando meu desmantelo
Em versos de pé quebrado
E que não sei terminar.
Estação
Meu coração não está em paz.
E por que deveria estar?
Todo mundo tem todos os problemas do mundo para resolver.
O ônibus para Guapimirim via Magé sai em cinco minutos,
Mas o pessoal que vai comigo não chegou
— Eles sempre se atrasam —
E o próximo ônibus só às cinco e quarenta.
Todos os mundos têm mundos de problemas para resolver.
A Viação Luxor tem ônibus para
Seropédica, Ypiranga, Jardim Primavera,
São Francisco, Ana Clara, Piabetá,
Nova Campina, Campos Elísios, Andorinhas.
Todos os problemas têm mundos para resolver.
Estamos hora e meia atrasados para Magé,
Vamos ter de pegar uma Besta.
É mais caro, mas já aprendi
Que o mundo se atrasa para se ajustar a nós.
Todo mundo em todos os mundos tem problemas para resolver.
E lá vamos nós pela Linha Vermelha
Entre lojas de móveis, postos de gasolina e motéis
Para cantar e dançar como se fosse a última vez
E como se o mundo dependesse disso.
Meu coração não deveria estar em paz.
Por que está?
Dispersão e Enfrentamento do Real
André Luiz Pinto
Sempre difícil a tarefa de apresentar um novo autor no já saturado cenário da produção de literatura no Brasil. É antiga a história de que exixtem mais poetas que leitores; que o que se produz geralmente se caracteriza pela baixa qualidade, ou, se reconhecido um ‘nível mínimo qualitativo’, um livro de estréia deve enfrentar o dilema da influência e das diluições, o enquadramento do estilo. Tudo isso pode ser demais para alguém que só desejava escrever e vir a ser lido. Demais para quem só pretendia superar, como numa garrafa lançada ao mar, a solidão; para quem só pretendia expôr um mundo novo – o seu mundo.
Os livros têm por destino submeter sua espontaneidade à lógica do dito, à política do interesse. As críticas sobre um recém-autor geralmente passam pelas exigências, estas sim maneiristas, do mercado; e pelas discussões de momento da academia. Já sendo sabido que exigências de mercado são irrisórias para um produto desvalorizado como a poesia, resta ao poeta o desafio de se adaptar – quando não se mimetiza literalmente – às discussões acadêmicas no intúito de alcançar o tão esperado reconhecimento. Do contrário, o que lhe reserva é o locus do anacronismo. Um primeiro livro de poesia, ainda que espelhe precipitação ou contenção demasiada, guarda no cerne desse espelhamento o absurdo de apontar em um autor recente, maneirismo, influência, diluição ou originalidade. Há como que um vício de hermenêutica em os que validam uma obra iniciante com sentenças técnicas. Toda técnica, mesmo as de uma arte, têm seu poder de fascínio e alienação. É preciso ouvir as vozes do poema, as tensões de homem que resvalam e ressoam numa primeira produção, sem, com isso, cairmos num paternalismo também vicioso. Julgamentos de primeira instância podem resultar em equívocos que, tal como nas editoras (mesmo as interessadas por poesia), acabam afastando o crítico competente de pronunciar-se diante do desafio do novo.
O livro que tenho em mãos chama a atenção. O desafio de hoje está na contracorrente das vanguardas e das retaguardas, do maniqueísmo estético que tal preocupação pode vir a estabelecer. E o que tentaremos é justamente abordar sobre uma obra que, a nosso ver, exige que prescindamos da exposição comparativa, mais interessada em determinar as relações de um livro com a tradição do que indicar a trajetória de seu pensamento; enfim, se nos limitássemos a definir pontes, reduziríamos, e muito, os ganhos que uma leitura livre poderia oferecer.
O autor que me chega é um desconhecido de público, Túlio Villaça. Seu livro de um título que não somente soa estranho, como antipoético: Antifonária. Se havia um perigo em falar sobre um autor estreante, agora, com esse título, a suspeita se concretiza. O julgamento, porém, é precipitado se observados os poemas, e se reconhecêssemos que não sabemos, de antemão, o que significa ‘antifonária’. Segundo um pequeno dicionário que tenho (Dicionário Brasileiro da Língua ortuguesa, p.123), diz que ‘antífona’ trata-se de um ‘versículo que se entoa antes de um salmo’ e ‘antifonária’, todo ‘livro de antífonas’. Existe um outro verbete correspondente, ‘antifonia’, ou seja, ‘canto em oitavas, entre os antigos gregos; (lógica) contradição’. São esses os instumentais que temos para navegar em sua arte. É a partir dessas definições que mergulharemos em seu mundo, ‘sem bússola’. Túlio enuncia com esse idiossincrático título o fato de seu livro tratar-se de uma coletânea; e isso já se trata de uma contradição: a de que todo poeta, mesmo os estreantes, almeja numa obra a univocidade, e não apenas uma mera coleção. Túlio parece querer dizer o contrário; o fato de que todo livro consiste a priori numa linguagem que não se precipita unívoca, mas informa na dispersão seu modo de uso.
Expor seu modo de uso é não deixar que a liguagem entre de férias, é desvendar na cotidianidade seu ser. Antifonária seria então uma coleção de poemas que precedem um salmo, e que podem ser tidos num livro; mais ainda, que antagonizam, em suas estruturas internas, com o encadeamento lógico – trata-se de uma resistência, aberta e declarada, a toda e qualquer tautologia. Antifonária apresenta o programa de uma poética já madura, o que lhe diferencia do bom aprendiz. Revela em seu primeiro livro o desafio e a sina que caracterizam um autor após longo período de vivência com aquilo que escreve. Os desafios estão prontos, as soluções articuladas em torno do que me parece ser sua obsessão inicial: a opacidade de um cotidiano e de uma realidade que só pode ser vencida pela descrição pormenorizada do real e das contingências da opacidade, somado ao enfrentamento de suas relações lógicas. Túlio não parece à vontade em estilizar o problema da sensação e do sentido fissurando-os, ao modo do Surrealismo. Aliás, a metáfora é um recurso descartado na maioria dos poemas de Antifonária. O poeta faz outra opção, mais rara e que não deixa de ter seus peregrinos (Gertrude Stein seria o melhor exemplo): enfrenta a inteligibilidade radicalizando sua estrutura lógica por meio das absurdidades do encadeamento.
É o que encontramos em “Lógica” (p.__), quando a partir de uma seqüência esdrúxula de pergunta-resposta, revela-se uma conclusão absurda. É óbvio que um logicista identificaria os desvios cometidos para que se chegasse àquela fórmula (“–Cachorro morto não atravessa a rua, pô!”); entanto não é isso que importa. Vale a pena apontarmos que o texto trata de um fato verídico. Uma poética da faticidade que, se por um lado expressa algum gosto pela ironia e pelo trocadilho, por outro associa-se ao trágico, produzindo poemas de clareza quase sufocante:
Câncer
Os funcionários do Banco do Brasil estão em greve.
No Centro Cultural Banco do Brasil acontece a exposição
Iberê Camargo, Mestre Moderno.
A exposição é no segundo andar.
Devido à greve, o segundo andar está fechado ao público.
Ninguém pode assistir a exposição.
Enquanto isso,
Iberê Camargo, mestre moderno,
O maior pintor brasileiro vivo,
Morre.
Título e texto harmonizam-se numa unidade que, associada a seu olhar jornalístico, tornam o simples fato em happening. O poeta opera com aquilo que o cinema denomina ‘profundidade de campo’, ou seja, o desenvolvimento de ações diversas em uma única cena. Desse recurso, raro em poesia, Túlio mostra completo domínio. Aliás, não são poucas as referências da poética de Túlio com a linguagem do cinema. Há planos-seqüência, como no belo poema crítico-social “Jacarezinho” (p.__): “Quatro negros/ Passam num Monza azul-metálico/ Do ano,/ Com guias de Oxóssi penduradas no retrovisor,/ Falando alto,/ Apesar do rádio ligado/ No máximo,/ Passam, dizia,/ Ao lado da vala aberta do esgoto/ Que desce do morro coalhado de barracos,/ E, ao lado da vala,/ Um CIEP,/ E, no telhado do CIEP,/ Pousa um garça branca.”; descrição e concisão se entrecruzam em prol da discrição necessária para que a abordagem sócio-política não cais no panfletário. Há como que, faço uso do conceito desenvolvido por Rogério Sganzerla em seu livro “Por um cinema sem limite”, a presença de uma ‘câmera cínica’ em muitos de seus poemas. ‘Câmera cínica’, define Sganzerla, “é a câmera que deixou de participar do movimento dramático, distanciou-se dele; olha-o indiferentemente, olha-o apenas”. Túlio fala de tragédias com indisfarsável cinismo, como em “A morte nossa de cada dia”, onde a personagem, depois de assistir dois assassinatos, lida com a inônia do trauma vendo televisão. Crueza e tragédia dialogam ironicamente. Nada fica de fora do humor: um Hai-kai antinatura, um soneto-pastiche, poemas-piada não–bufões, que nos provocam questões quase conceituais, como em “L’esprit du fin de siècle”, em que o poeta desarticula a máxima romana em outra, de uma outra era e de uma outra pax: “Vim, vi e vendi”; ou no juízo de igualdade, nada ingênuo, “Piercing é botoque” (“Atavismo”, p.__).
Recorte ecolagem ganham destaque naquele que me parece ser um dos melhores poemas nesse fim/começo de século e milênio, “Odisséia” (p.__); jargões de diversas línguas e épocas irradiam numa visão crepuscular do tempo; onde o tempo anuncia-se na aurora. Valem a pena os versos: “Adonei/ Deus ex machina/ Magister dixit/ Fiat lux!/ Mehr licht!/ Obscurum per obscurus/ Ab ovo/ Ab absurdo/ Deo gratias!”; Túlio adota o recurso da tradução simultânea, explicitando o significado: O senhor/ Deus, por um artifício/ O mestre disse/ Faça-se a luz!/ Mais luz!/ O obscuro pelo mais obscuro/ A partir do princípio/ A partir do absurdo/ Graças a Deus!”; é a trajetória trágica do homem, “voz clamando no deserto”. Signo de guerra, vitória e derrota tornam o homem único capaz de enfrentar com ódio e esperança a morte, anunciada desde o início dos versos. Odisséia inscrita no centro da vida, “a morte é o último argumento”.
As referência bíblicas não terminam por aqui. Há toda uma consumação da água e do fogo, samba do crioulo doido, “Trilha sonora” (p.__) para a guerra; onde o poeta descreve aquilo que seria um show de rock, cenário de estranha exorcização e batismo: a ‘afinação original’ do contrabaixo, o ‘alaúde elétrico’ da guitarra, a ‘evolução e síntese/ de todos os tambores de todas as tribos/ de todos os batuques de todos os rituais/ de todas as religiões de todos os deuses/ e sem-deus’, subsumidos na bateria – e em seu claustrofóbico guerreiro –, e o vocalista, que ‘berra em qualquer língua/ (…) mantras que falam do fim do mundo/ e de sua ressureição ao terceiro dia’. Seria bom frizar que Túlio Villaça, além de poeta, é músico. Referências pessoais com relação à profissão são inúmeras – um violão perdido, e a digressão na hora fatal de o encontrar. Ironia nostálgica, de que “mudamos, não seremos mais os mesmos”. Eu e o violão, o violão-consigo. Sintoma de rumarmos para nós, ‘palimpsesto’ para a morte; somos o último argumento. Túlio Villaça aparenta entregar-se a outro rumo, onde o poeta se escreve com palavras, mas as idéias estão subjacentes a estas. O poema inscrito com idéias escreve-se com palavras; desfralda-se a obsessão de Platão, pois a cópia melhor expressa a idéia do que ela mesma; ou, sob o recorte de Wittgenstein, compreensão e comunicação cristalizam-se reciprocamente. Toda essência é dita e inscrita na palavra, fora desta não há salvação, caem no Hades, “ou apenas descrevem/ Sentidos esparsos/ e gritam no espaço/ Esperando resposta” (“Lispector”, p.__).
Toda dispersão é seu enfrentamento, “dar vozes às coisas/ E nomes aos gostos” (p.__); enfrentar o real na calosidade de sua existência, ou seja, na inexistência de sua coisa. Dispersão afetiva, que fazem dos poemas e dos poetas serem tão poucos. Túlio assume e utiliza a dispersão, sabe da impossibilidade da fidedignidade que perpassa toda escritura. Sabe que, enquanto escreve, lida apenas com sintomas (“Uma nova, quiçá uma extinta, uma possível,/ Uma outra forma de amor.“). Artigo indefinido, na contrariedade que o nome do sintagma anuncia. Ou quiçá, na contrariedade de suas teses, todo “Sintoma” é “Síntese” (p.__), como demonstra entender o poeta na sucessão dos dois poemas. A poética de Túlio Villaça traduz-se – ou traimos – num fogo novo, primogênito e solitário, alheio a toda técnica, simples desígnio.
(Que pena um prefácio ser tão pouco).