André Luiz Pinto
Sempre difícil a tarefa de apresentar um novo autor no já saturado cenário da produção de literatura no Brasil. É antiga a história de que exixtem mais poetas que leitores; que o que se produz geralmente se caracteriza pela baixa qualidade, ou, se reconhecido um ‘nível mínimo qualitativo’, um livro de estréia deve enfrentar o dilema da influência e das diluições, o enquadramento do estilo. Tudo isso pode ser demais para alguém que só desejava escrever e vir a ser lido. Demais para quem só pretendia superar, como numa garrafa lançada ao mar, a solidão; para quem só pretendia expôr um mundo novo – o seu mundo.
Os livros têm por destino submeter sua espontaneidade à lógica do dito, à política do interesse. As críticas sobre um recém-autor geralmente passam pelas exigências, estas sim maneiristas, do mercado; e pelas discussões de momento da academia. Já sendo sabido que exigências de mercado são irrisórias para um produto desvalorizado como a poesia, resta ao poeta o desafio de se adaptar – quando não se mimetiza literalmente – às discussões acadêmicas no intúito de alcançar o tão esperado reconhecimento. Do contrário, o que lhe reserva é o locus do anacronismo. Um primeiro livro de poesia, ainda que espelhe precipitação ou contenção demasiada, guarda no cerne desse espelhamento o absurdo de apontar em um autor recente, maneirismo, influência, diluição ou originalidade. Há como que um vício de hermenêutica em os que validam uma obra iniciante com sentenças técnicas. Toda técnica, mesmo as de uma arte, têm seu poder de fascínio e alienação. É preciso ouvir as vozes do poema, as tensões de homem que resvalam e ressoam numa primeira produção, sem, com isso, cairmos num paternalismo também vicioso. Julgamentos de primeira instância podem resultar em equívocos que, tal como nas editoras (mesmo as interessadas por poesia), acabam afastando o crítico competente de pronunciar-se diante do desafio do novo.
O livro que tenho em mãos chama a atenção. O desafio de hoje está na contracorrente das vanguardas e das retaguardas, do maniqueísmo estético que tal preocupação pode vir a estabelecer. E o que tentaremos é justamente abordar sobre uma obra que, a nosso ver, exige que prescindamos da exposição comparativa, mais interessada em determinar as relações de um livro com a tradição do que indicar a trajetória de seu pensamento; enfim, se nos limitássemos a definir pontes, reduziríamos, e muito, os ganhos que uma leitura livre poderia oferecer.
O autor que me chega é um desconhecido de público, Túlio Villaça. Seu livro de um título que não somente soa estranho, como antipoético: Antifonária. Se havia um perigo em falar sobre um autor estreante, agora, com esse título, a suspeita se concretiza. O julgamento, porém, é precipitado se observados os poemas, e se reconhecêssemos que não sabemos, de antemão, o que significa ‘antifonária’. Segundo um pequeno dicionário que tenho (Dicionário Brasileiro da Língua ortuguesa, p.123), diz que ‘antífona’ trata-se de um ‘versículo que se entoa antes de um salmo’ e ‘antifonária’, todo ‘livro de antífonas’. Existe um outro verbete correspondente, ‘antifonia’, ou seja, ‘canto em oitavas, entre os antigos gregos; (lógica) contradição’. São esses os instumentais que temos para navegar em sua arte. É a partir dessas definições que mergulharemos em seu mundo, ‘sem bússola’. Túlio enuncia com esse idiossincrático título o fato de seu livro tratar-se de uma coletânea; e isso já se trata de uma contradição: a de que todo poeta, mesmo os estreantes, almeja numa obra a univocidade, e não apenas uma mera coleção. Túlio parece querer dizer o contrário; o fato de que todo livro consiste a priori numa linguagem que não se precipita unívoca, mas informa na dispersão seu modo de uso.
Expor seu modo de uso é não deixar que a liguagem entre de férias, é desvendar na cotidianidade seu ser. Antifonária seria então uma coleção de poemas que precedem um salmo, e que podem ser tidos num livro; mais ainda, que antagonizam, em suas estruturas internas, com o encadeamento lógico – trata-se de uma resistência, aberta e declarada, a toda e qualquer tautologia. Antifonária apresenta o programa de uma poética já madura, o que lhe diferencia do bom aprendiz. Revela em seu primeiro livro o desafio e a sina que caracterizam um autor após longo período de vivência com aquilo que escreve. Os desafios estão prontos, as soluções articuladas em torno do que me parece ser sua obsessão inicial: a opacidade de um cotidiano e de uma realidade que só pode ser vencida pela descrição pormenorizada do real e das contingências da opacidade, somado ao enfrentamento de suas relações lógicas. Túlio não parece à vontade em estilizar o problema da sensação e do sentido fissurando-os, ao modo do Surrealismo. Aliás, a metáfora é um recurso descartado na maioria dos poemas de Antifonária. O poeta faz outra opção, mais rara e que não deixa de ter seus peregrinos (Gertrude Stein seria o melhor exemplo): enfrenta a inteligibilidade radicalizando sua estrutura lógica por meio das absurdidades do encadeamento.
É o que encontramos em “Lógica” (p.__), quando a partir de uma seqüência esdrúxula de pergunta-resposta, revela-se uma conclusão absurda. É óbvio que um logicista identificaria os desvios cometidos para que se chegasse àquela fórmula (“–Cachorro morto não atravessa a rua, pô!”); entanto não é isso que importa. Vale a pena apontarmos que o texto trata de um fato verídico. Uma poética da faticidade que, se por um lado expressa algum gosto pela ironia e pelo trocadilho, por outro associa-se ao trágico, produzindo poemas de clareza quase sufocante:
Câncer
Os funcionários do Banco do Brasil estão em greve.
No Centro Cultural Banco do Brasil acontece a exposição
Iberê Camargo, Mestre Moderno.
A exposição é no segundo andar.
Devido à greve, o segundo andar está fechado ao público.
Ninguém pode assistir a exposição.
Enquanto isso,
Iberê Camargo, mestre moderno,
O maior pintor brasileiro vivo,
Morre.
Título e texto harmonizam-se numa unidade que, associada a seu olhar jornalístico, tornam o simples fato em happening. O poeta opera com aquilo que o cinema denomina ‘profundidade de campo’, ou seja, o desenvolvimento de ações diversas em uma única cena. Desse recurso, raro em poesia, Túlio mostra completo domínio. Aliás, não são poucas as referências da poética de Túlio com a linguagem do cinema. Há planos-seqüência, como no belo poema crítico-social “Jacarezinho” (p.__): “Quatro negros/ Passam num Monza azul-metálico/ Do ano,/ Com guias de Oxóssi penduradas no retrovisor,/ Falando alto,/ Apesar do rádio ligado/ No máximo,/ Passam, dizia,/ Ao lado da vala aberta do esgoto/ Que desce do morro coalhado de barracos,/ E, ao lado da vala,/ Um CIEP,/ E, no telhado do CIEP,/ Pousa um garça branca.”; descrição e concisão se entrecruzam em prol da discrição necessária para que a abordagem sócio-política não cais no panfletário. Há como que, faço uso do conceito desenvolvido por Rogério Sganzerla em seu livro “Por um cinema sem limite”, a presença de uma ‘câmera cínica’ em muitos de seus poemas. ‘Câmera cínica’, define Sganzerla, “é a câmera que deixou de participar do movimento dramático, distanciou-se dele; olha-o indiferentemente, olha-o apenas”. Túlio fala de tragédias com indisfarsável cinismo, como em “A morte nossa de cada dia”, onde a personagem, depois de assistir dois assassinatos, lida com a inônia do trauma vendo televisão. Crueza e tragédia dialogam ironicamente. Nada fica de fora do humor: um Hai-kai antinatura, um soneto-pastiche, poemas-piada não–bufões, que nos provocam questões quase conceituais, como em “L’esprit du fin de siècle”, em que o poeta desarticula a máxima romana em outra, de uma outra era e de uma outra pax: “Vim, vi e vendi”; ou no juízo de igualdade, nada ingênuo, “Piercing é botoque” (“Atavismo”, p.__).
Recorte ecolagem ganham destaque naquele que me parece ser um dos melhores poemas nesse fim/começo de século e milênio, “Odisséia” (p.__); jargões de diversas línguas e épocas irradiam numa visão crepuscular do tempo; onde o tempo anuncia-se na aurora. Valem a pena os versos: “Adonei/ Deus ex machina/ Magister dixit/ Fiat lux!/ Mehr licht!/ Obscurum per obscurus/ Ab ovo/ Ab absurdo/ Deo gratias!”; Túlio adota o recurso da tradução simultânea, explicitando o significado: O senhor/ Deus, por um artifício/ O mestre disse/ Faça-se a luz!/ Mais luz!/ O obscuro pelo mais obscuro/ A partir do princípio/ A partir do absurdo/ Graças a Deus!”; é a trajetória trágica do homem, “voz clamando no deserto”. Signo de guerra, vitória e derrota tornam o homem único capaz de enfrentar com ódio e esperança a morte, anunciada desde o início dos versos. Odisséia inscrita no centro da vida, “a morte é o último argumento”.
As referência bíblicas não terminam por aqui. Há toda uma consumação da água e do fogo, samba do crioulo doido, “Trilha sonora” (p.__) para a guerra; onde o poeta descreve aquilo que seria um show de rock, cenário de estranha exorcização e batismo: a ‘afinação original’ do contrabaixo, o ‘alaúde elétrico’ da guitarra, a ‘evolução e síntese/ de todos os tambores de todas as tribos/ de todos os batuques de todos os rituais/ de todas as religiões de todos os deuses/ e sem-deus’, subsumidos na bateria – e em seu claustrofóbico guerreiro –, e o vocalista, que ‘berra em qualquer língua/ (…) mantras que falam do fim do mundo/ e de sua ressureição ao terceiro dia’. Seria bom frizar que Túlio Villaça, além de poeta, é músico. Referências pessoais com relação à profissão são inúmeras – um violão perdido, e a digressão na hora fatal de o encontrar. Ironia nostálgica, de que “mudamos, não seremos mais os mesmos”. Eu e o violão, o violão-consigo. Sintoma de rumarmos para nós, ‘palimpsesto’ para a morte; somos o último argumento. Túlio Villaça aparenta entregar-se a outro rumo, onde o poeta se escreve com palavras, mas as idéias estão subjacentes a estas. O poema inscrito com idéias escreve-se com palavras; desfralda-se a obsessão de Platão, pois a cópia melhor expressa a idéia do que ela mesma; ou, sob o recorte de Wittgenstein, compreensão e comunicação cristalizam-se reciprocamente. Toda essência é dita e inscrita na palavra, fora desta não há salvação, caem no Hades, “ou apenas descrevem/ Sentidos esparsos/ e gritam no espaço/ Esperando resposta” (“Lispector”, p.__).
Toda dispersão é seu enfrentamento, “dar vozes às coisas/ E nomes aos gostos” (p.__); enfrentar o real na calosidade de sua existência, ou seja, na inexistência de sua coisa. Dispersão afetiva, que fazem dos poemas e dos poetas serem tão poucos. Túlio assume e utiliza a dispersão, sabe da impossibilidade da fidedignidade que perpassa toda escritura. Sabe que, enquanto escreve, lida apenas com sintomas (“Uma nova, quiçá uma extinta, uma possível,/ Uma outra forma de amor.“). Artigo indefinido, na contrariedade que o nome do sintagma anuncia. Ou quiçá, na contrariedade de suas teses, todo “Sintoma” é “Síntese” (p.__), como demonstra entender o poeta na sucessão dos dois poemas. A poética de Túlio Villaça traduz-se – ou traimos – num fogo novo, primogênito e solitário, alheio a toda técnica, simples desígnio.
(Que pena um prefácio ser tão pouco).
Nenhum comentário:
Postar um comentário